1 de janeiro de 2003

“Carta ao jovem Manuel Antônio Álvares de Azevedo”

“Carta ao jovem Manuel Antônio Álvares de Azevedo”, Revista Escrita n. 5, Revista dos Alunos do Programa de Mestrado e Doutorado em Letras da PUC-Rio, 2003, v. 5, p. 1-6 (primeira página).

Sr. Azevedo,

O tratamento de senhor tem aqui uma função: deixar nua a disparidade entre sua pouca idade e tudo o que o senhor escreveu e que se encontra, hoje, registrado no que se costuma chamar os cânones da história da literatura brasileira. Sua muita importância e seus poucos anos me lembram o João Nicolau Artur, que o senhor não conheceu em vida mas que, pelos meus cálculos, deve estar por aí onde o senhor está. Eu também não o conheci, ao João Nicolau, embora conheça o que dele restou. Seu sobrenome é Rimbaud, ele nasceu dois anos depois de sua morte e fez o melhor que pôde até os dezenove, vinte anos. Não morreu tão novo como o senhor; morreu aos trinta e sete, mas o Rimbaud que nos interessa aqui é aquele que morreu aos vinte. Enfim, senhor Azevedo, o senhor não repare se eu lhe fizer saber acerca de si o que já é sabido, mas estou, enquanto lhe escrevo, tentando ver se consigo pensar alto, e o senhor é meu pretexto, e será meu pastor. Por quê? Porque eu poderia me dirigir, não ao senhor, mas ao seu trabalho, à sua poesia, e tratá-la por tu. Dirigir-me diretamente à sua “Lira dos vinte anos”. Mas não; dirijo-me ao senhor, que já morreu nos dois sentidos da palavra morte — morreu como corpo que envelhece e morre e morreu como autor, que, no ato da criação, também morre, e morre repetidas vezes, para dar lugar ao criado. É ao senhor, pois, que me dirijo porque sei que é ao senhor que me devo dirigir quando penso na sua “Lira dos vinte anos”. É o senhor que lá está e que quis lá estar no momento em que a escreveu. Seu trabalho e sua vida restam, deste modo, intimamente relacionados. Pelo que me consta, o senhor nasceu em São Paulo, em 1831, e morreu em 1852, no Rio de Janeiro, aos vinte e um anos. Aos dezesseis, o senhor já tinha um diploma de bacharel em letras, já era sabido, bastante letrado e imagino que não muito modesto. Sua vida e sua obra, e eu já estou autorizado a lançar mão deste termo — obra —, uma vez que seus escritos se encontram dentro de uma tradição, a tradição romântica... Sua vida e sua obra, dizia, estão amarradas por um fio de morte, não apenas a sua morte, mas a sua idéia de morte. A nossa morte, já disse alguém, provavelmente um retórico da lógica, não existe, pois a enunciação “eu morri” é logicamente impossível de ser proferida. O sujeito não anuncia a própria morte, não se convence dela pela própria experiência; é, no máximo, morto pela morte. Já que não se pode “viver a morte”, resta-nos então pensá-la, o que não é tarefa menos custosa. Como poderá um ser pensante pensar sua condição de ser não-pensante? Isto são assuntos para a filosofia. Existe um sujeito que o senhor não conhece, a não ser que ele já tenha morrido, e isso eu não sei, chamado Vladmir Jankélévitch, que escreveu um livro chamado La mort. Diz ele que morrer não é tornar-se outro, mas vir a ser nada ou, o que quer dizer o mesmo, transformar-se em absolutamente outro, porque, se o relativamente outro é ainda uma maneira de ser, o absolutamente outro que é o contraditório do mesmo, se comporta em relação a este como o não-ser em relação ao ser, fecham-se as aspas. Só será possível imaginar-se um outro radical quando se está radicalmente naquilo que se é, ou seja, o mesmo. Tudo isso para lhe dizer, senhor Azevedo, que, ao falar e escrever obsessivamente sobre a morte, como o senhor fez em tantas cartas à sua mãe e à sua irmã, falando da morte prematura de seu irmão, de seus colegas de faculdade e outras tantas mortes que o cercaram, o senhor não estava fazendo nada mais que celebrando, por linhas tortíssimas, a vida, a mesma vida que se esvaía através de seu peito doente e que iria constituir a sua obsessão em negativo. Permita-me citá-lo:

Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente
......................................................
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro.

(“Lembrança de morrer”)

E também me permita lembrá-lo da primeira epígrafe à primeira parte de sua “Lira dos vinte anos”, em que o senhor cita Bocage: “Cantando a vida, como o cisne a morte”. O senhor faz parte de uma segunda geração do modernismo, conhecida como a geração gótica. O gótico do nome é o batismo de uma série de características típicas de um estilo que floresceu no século XV: lugubricidade, mas também lubricidade — a morte e o sexo, enfeitados com sombras, mistérios e ambientes trevosos. Sua inspiração e seus instintos nunca se separaram. A primeira parte de sua “Lira dos vinte anos” difere bastante da segunda. Seu primeiro prefácio, chamemo-lo assim, é desculpativo e enjoado. Nele o senhor expõe ao mundo seu amor, despe sua musa de toda a mística e a coloca seminua para que a leiam. Tudo neste seu primeiro prefácio se ressente de uma falta. O senhor enumera imagens e delas retira suas qualidades intrínsecas, descaracterizando-as e com isso realizando uma separação entre elementos inseparáveis. Exemplifico com o seu prefácio, aqui transcrito integralmente:

São os primeiros cantos de um pobre poeta. Desculpai-os. As primeiras vozes do sabiá não têm a doçura dos seus cânticos de amor.

[Atenção agora para esta enumeração absurda:] É uma lira, mas sem cordas: uma primavera, mas sem flores, uma coroa de folhas, mas sem viço.

Cantos espontâneos do coração, vibrações doridas da lira interna que agitava um sonho, notas que o vento levou, — com isso dou a lume essas harmonias.

São as páginas despedaçadas de um livro não lido...

E agora que despi a minha musa saudosa dos véus do mistério do meu amor e da minha solidão, agora que ela vai seminua e tímida por entre vós, derramar em vossas almas os últimos perfumes de seu coração — ó meus amigos, recebei-a no peito, e amai-a como o consolo que foi de uma alma esperançosa, que depunha fé na poesia e no amor — esses dois raios luminosos do coração de Deus.

O senhor, de fato, mudou muito. No primeiro prefácio, entra pedindo desculpas; no segundo, o prefácio à segunda parte de sua “Lira dos vinte anos”, entra com uma bomba na mão e a joga no colo do leitor. Há agora uma postura bem diversa. O senhor está mais à vontade para dirigir-se àqueles que agora considera seus pares, colegas de ofício: Cervantes, Shakespeare, o Goethe, não do Werther mas do Fausto, o Homero, não dos poemas épicos, mas dos irônicos. O senhor está também mais virulento, e sua virulência é dirigida ao ultra-romantismo que não passa de poesia de arremedo e modismo, um ultra-romantismo do tipo que só trabalha com celebrações gratuitas, cansativas e já cansadas, de amor, vida e luz. Seu prefácio, como quase todo prefácio, é uma antecipação — a preparação de um terreno sobre o qual irá caminhar o leitor desavisado. E o senhor o avisa: “Cuidado, leitor, ao voltar esta página!”. O reino, a partir deste liame, será outro; será a pátria dos sonhos de Shakespeare e Cervantes. O importante, aqui, não é tanto se estar a falar de Shakespeare e Cervantes; é estar-se a falar de sonhos. O senhor não imagina, meu caro Azevedo, como se irá falar de sonhos depois de sua morte. O senhor pede perdão aos poetas do tempo e parece que não se vê mais como um deles, os liliputianos poetastros, ou seja, os maus poetas de qualquer país imaginário, como o Lilipute das Viagens de Gulliver, entupido de pequenos poetas de seis polegadas de altura. O senhor é mais alto, sente-se à frente e mais acima, e seu assunto será outro. Cito-o:

Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo, e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de oiro.

Há um filósofo italiano chamado Norberto Bobbio, que o senhor irá conhecer em breve, espero que não tão brevemente assim, que afirmou em recente entrevista que já não está entendendo mais nada do mundo... Ele provavelmente está a falar de crises. O senhor é chegado ao cantar das crises e foi dos que mais apreciaram estar em pleno “mal do século”, pelo meio do século XIX, para o qual não parecia haver remédio que chegasse, à exceção de toda a ironia e todo o sarcasmo possíveis. Porque há, sim, na idéia de fim, de aniquilamento, de ocaso, de decadência, de falta do que fazer, uma irresistível atração poética, e o senhor se apaixonou. A decadência é um ótimo assunto e será seu piso nesta segunda parte de sua lira. O tempo a partir do qual eu aqui lhe falo é o início do século XXI e também o início de um milênio. Lá se vão dois mil anos, e os nossos ocasos são outros porque outros são os nossos problemas. Mas somos os mesmos homens. Cito-o:

O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem (...). Tem nervos, tem fibra e tem artérias — isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. E digam o que quiserem, sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não há poesia.

Isto, à sua época, é certamente um corte, um corte pelo meio da carne: a celebração de uma poesia que virá de um poeta que não é só alma, mas corpo. Sua proposta em seu prefácio é uma visada para as fronteiras do indivíduo, bem mais certeira que os idealismos generalizantes dos poetas que o precederam e que tinham como assunto a natureza alegre e ruidosa que observavam fora de si, ou a Pátria, a Tradição e outros conceitos bons para o pensamento, se não são todos os conceitos bons para o pensamento... O senhor, com o seu prefácio, faz o convite a que se reúnam, agora dentro de si, e também do leitor, o dia e a noite do mundo. A tormenta existe, e façamos com ela a poesia, mas a tormenta é interna. Há também neste parágrafo que transcrevi um chamamento dirigido às coisas prosaicas, sem as quais, como o senhor escreveu, não há poesia, mas também não há, acredito, ironia, e o senhor está cheio de ironia para dar. É tido como o mais irônico de nossos românticos, e seu segundo prefácio dá a entender que o caminho natural da poética dos amores vaporosos vai descambar na “sátira que morde”, palavras suas. O senhor não me parece estar preocupado com elementos prosaicos que se encontrem fora de si. Vamos a um outro trecho:

Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta porque sua vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico sem ser monótono.
(...)

A poesia puríssima banha com seu reflexo ideal a beleza sensível e nua.

O senhor quer falar dos amores da vida real e da formosa beleza da mulher de carne e osso que ama, mas sua alma ainda é trêmula, ressoante e só pensa em si mesma. O seu texto parece querer tornar-se um manifesto contra o idealismo de alvos longínquos que já não mais interessaria aos novos poetas como o senhor, que então pergunta: “... o que pode senão fazer o poema dos amores da vida real?”. Ora, a poesia puríssima cantará a vida real e prosaica com seu reflexo ideal e verá que esta mesma vida real e prosaica é doente e irá degenerar. Suas idealizações continuam, apenas me parecem agora estar acompanhadas de frustração. Seu prefácio é sua resposta e sua reação ao grande abismo surgido entre sua poesia e seus alvos: o seu eterno feminino e sua querida morte. Agora estão ambos dentro do senhor, e continuarão inatingíveis. Tudo o mais que está fora será, então, prosaico e digno de sua indiferença. Vou citar um pedaço do seu poema Idéias Íntimas:

Vou ficando blasé, passeio os dias
pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler nem poetar. Vivo fumando.

O senhor termina seu prefácio dizendo: “Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas páginas, destinadas a não ser lidas”. Esta é, de fato, a minha impressão: a impressão de que seu prefácio está adiante até mesmo de si próprio, porque admite em sua poética uma contradição básica, que não resolve. O senhor diz que sua “Lira dos vinte anos” se funda em uma binomia e que o livro é uma medalha de duas faces. De um lado, a celebração do amor espontâneo e da poesia, a idealização de seu eterno feminino; de outro, a exaustão causada pelo sentimentalismo e sua guerra particular com os idealismos vaporosos. Suas ferramentas: a ironia e o sarcasmo como remédios contra sua eterna frustração. Sua vida, senhor Azevedo, foi tão romântica quanto sua morte, e sua poesia, a primeira que se atreveu a tentar assuntar o inconsciente e sua  negrura básica.

Seu,

Juva


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