1 de janeiro de 2007

“O SEF nosso de cada dia”

[Sem data definida.]
“O SEF nosso de cada dia”, JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, Portugal, p. 39.

Um brasileiro em Portugal, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Lisboa, os angolanos, marroquinos, botsuanos, argelinos e chineses, os documentos, o tempo, a espera, a fome, a literatura, o caos.

E, num belo dia de setembro, mudei-me para Portugal...

Mas eu sempre soube que nunca seria um alfacinha, porque um alfacinha é aquele sujeito que nasce em Lisboa. Nunca serei um alfacinha porque sou, antes de tudo, um carioca. Mas, se for um carioca que mora nos arredores de Lisboa, posso ser um carioca e estar um “alfacinha-de-arredores”? Posso alcançar uma condição intermediária, entre o carioca e o alfacinha? Se calhar posso.

E porque estou morando ao pé de Lisboa em condições, digamos, turístico-clandestinas, sou, para todos os efeitos legais, um brasileiro que está cá uns tempos e que de três em três meses retorna ao Brasil — situação que não pode perdurar porque eu, afinal, estou mesmo residindo aqui por estas terras e preciso do que se chama um visto de residência. Preciso, na verdade, de uma autorização de residência, e porque eu não me contento com pouco: uma autorização permanente de residência.

Imbuído, pois, desse desejo de estar um alfacinha-de-arredores, ou ao menos um residente nos termos da Lei, dirigi-me ao órgão aqui em Lisboa que trata de assuntos dessa envergadura, o chamado SEF — Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. E, porque não sou bobo, levei um livro para ler, provavelmente de cabo a rabo, enquanto esperava a minha vez de ser atendido e entrevistado. Fiquei na dúvida entre Guerra e Paz ou Crime e Castigo e optei pelo primeiro — embora tenha carregado também o segundo, para o caso de ficar sem ter o que ler... —, e para lá me encaminhei.

Lá no SEF, em muito pouco tempo, deduzi que afinal aquele dia se firmaria em minha memória como um dia singular e sobre o qual eu um dia escreveria. E eu estava otimista, é verdade, e cheio de razão, pois sou casado com uma portuguesa há dez anos, tenho uma filha brasileira e portuguesa, temos cá uma casa própria, uma casa portuguesa com certeza, temos cá condições de habitabilidade, meios de subsistência e vinho na adega. Por que não me dariam uma autorização permanente de residência?

Adentrei o SEF e caiu-me o queixo. Um lugar de teto baixo e pleno de gente, muitos angolanos e argelinos e marroquinos e botsuanos e... (quem nasce na Guiné-Bissau é o quê?), e ainda cidadãos de outros países da África, mais especialmente, presumo, países de língua portuguesa, e também muitos chineses e pessoas de lugares estranhos e de línguas engraçadas de se ouvir. Havia poucos assentos e muitos candidatos a disputar os assentos, e sobre as nossas cabeças a chamada zoeira dos demônios. E todas essas pessoas tão diferentes, com diferentes histórias de vida, se vêem de repente ali, aglomeradas, e todas aquelas histórias de vida apresentariam, caso fossem escritas, esse episódio comum: estiveram um dia inteiro de suas vidas lá no SEF, a esperar a vez de conseguir um assento e em seguida ser atendidas e entrevistadas pelas moças do balcão. Peguei a minha senha às 8h15m da manhã de uma quinta-feira, dia 20 de abril último, e li no papelzinho que a previsão de atendimento apontava para as 10h11m, uma previsão formulada, creio, por um programa de computador que calcula médias de horários sob a luz de uma espécie de otimismo digital. Peguei o meu Guerra e Paz, feliz por ter trazido também o meu Crime e Castigo, e fiquei zanzando com o livro na mão, à espera de um lugar ao chão...

E me distraí olhando ao redor, e olhando pensei que todos os países do mundo têm lá o seu SEF, e todos os SEFs do mundo devem ser iguais, ou piores — piores que o SEF do quinto dos infernos, sem dúvida, porque o SEF do quinto dos infernos pelo menos está sempre vazio, ao passo que o SEF de Lisboa, que é a bela e apaixonante cidade de um belo e apaixonante país para se morar, está sempre cheio de gente de vários lugares da África e cheio de chineses e outras gentes de língua engraçada de se ouvir. Uma pessoa à espera no SEF deve observar tudo e com tudo se distrair, pensei eu, ainda mais sendo essa pessoa um dono-de-casa-que-escreve, o meu caso. Ao trabalho etnográfico, pois. Mas, antes, a minha autorização permanente de residência, se faz favor.

Tenho todos os papéis cá comigo, que conferi minuciosamente e com grande requinte, mas nunca será demais reconferir, e decido enfim me sentar no chão mesmo, num canto mais limpinho que encontrei perto de uma parede, onde me encostei com um suspiro de alívio por estar a descansar as minhas fatigadas pernas de estrangeiro, e peguei o meu requerimento principal e a sua cópia, e o meu passaporte e a sua cópia, cópia de todas as folhas, não bastando das primeiras três, segredaram-me, e a certidão de casamento brasileira e ainda a sua cópia, seguida do assento de casamento que tiramos lá no consulado português no Brasil e a sua cópia, e quando eu digo cópia eu digo cópia certificada, e também a legitimação desse assento de casamento pela Conservatória do Registro Civil de Santo Amaro de Oeiras, local onde moramos, ao pé de Lisboa, e com data recente, porque eu tinha um certificado com data antiga que é antiga demais, e sabe-se lá, podiam imaginar que a minha mulher, ou eu, se casou ou casei, novamente com outro ou outra, e agora um formulariozinho assinado por ela, que aqui em Portugal se torna então responsável por este estrangeiro que vos fala, e todas as suas identificações de esposa, e agora vejamos as provas de que moramos juntos, e para isso uma declaração do Imposto de Renda de 2006 aqui de Portugal, ano-base 2005, será suficiente, e agora, para garantir, lá tenho eu também em cópias certificadas e em originais as certidões de nascimento brasileira e portuguesa da linda filha que temos, e estamos com tudo em cima, não esquecendo de conferir os meus registros criminais no Brasil, garantidos pelo Departamento de Polícia Federal e pela Delegacia de Defesa Institucional e ainda, em Portugal, pela Direção-Geral da Administração da Justiça, que atestam ambos os meus antecedentes, que são ótimos e até mesmo invejáveis..., e será ainda preciso provar que temos onde habitar, e para isso cá está a escritura de compra de nossa ótima casa, que nos deram de presente os meus sogros, e como vamos nos sustentar?, será a pergunta seguinte, e eu então mostrarei à moça do balcão o contrato de trabalho da pessoa-cônjuge e também os seus recibos de salário, que provarão às autoridades portuguesas que temos dinheiro para viver e ainda comprar livros, cds e vinhos, porque este que aqui fala não trabalha fora, embora escreva, como se vê (lê). Tudo isso e as suas cópias autenticadas e certificadas e mais que legitimadas, e quanto tempo falta para eu ser atendido?

Muito, e decidi então, porque eu não estava satisfeito com a minha checagem de documentos, reorganizá-los melhor, e por categorias, e fui a um bazar chinês ali perto, não sem antes conferir qual era a senha da vez, era a 36-G, e o meu número, meu e de mais ninguém, claro está, era o 56-G. Será que vai andar rápido agora? Não, o 35-G demorou uns vinte minutos. Fui à loja correndo, comprei clipses coloridos para ajudar na catalogação, e correndo retornei ao meu posto; correndo é modo de dizer porque eu estava mancando, e algumas pessoas lá do SEF, sentadas, até me olharam com alguma comiseração, embora ninguém tenha cedido o próprio lugar a um estrangeiro náfego (e eu cederia?). O número? O mesmo 36-G. Fiz cara de choro mas não chorei. Não se deve chorar no SEF, pega mal. Encaminhei-me ao meu canto, mas ele estava ocupado por uma família de cinco membros chineses, todos sentados a rir de alguma coisa. Procurei o que poderia ser aquela coisa de que se riam mas não encontrei. Catei outro canto e desatei a reorganizar os papéis, desta vez clipsando-os nas categorias Eu, Esposa, Casamento, Moradia, Sustento, Filha e, por fim, Antecedentes criminais.

Detive-me longamente nessa recatalogação, o que tenho é tempo, pensei, e olhei para o marcador eletrônico para ver novamente o 36-G, e, aproximando-se de mim, uma senhora gorda sustentada por duas muletas de madeira e a carregar um pé inchadíssimo envolto nuns esparadrapos empretecidos, avermelhados e também amarelecidos com sujeira, sangue e pus. E baixei meus papéis para acompanhar o trajeto daquela senhora quem sabe de algum dos 54 países da África, se não me engano, que atravessou toda a grande sala em busca de uma cadeira, e não houve cadeira que se apresentasse, e ela retornou ao ponto de origem, que eu dali de meu canto no chão não podia ver, e mentalmente dei de ombros, aliviado por não ter qualquer obrigação de lhe ceder meu lugar no chão, porque chão ali havia muito, e dos bons. Horas passando, tic-tac, tic-tac, eu já bastante avançado no meu Guerra e Paz, e senti fome. E decidi sair correndo a uma tasquinha ali perto para comer um sanduíche com um suco de laranja. Olhei o número, agora era o 39-G, saí à rua e entrei na tasca e comi aquilo tudo com o coração aos saltos, total e repentinamente dominado pela certeza de que, por uma razão desconhecida ou então porque os portadores dos números posteriores ao 39-G se tinham cansado e abandonado a arena, os atendimentos seguintes àquele 39-G seriam rapidíssimos, e eu acabaria então ultrapassado sob a alegação: “56-G não presente! O próximo!”. E aquela imagem me foi dominando a um tal ponto que pedi ao moço da tasca que colocasse num copinho de plástico o meu suco e aceitasse por favor aqueles três euros naquele mesmo minuto, porque eu precisava ir embora o quanto antes. E, ainda que manco, ganhei as ruas às carreiras e adentrei o SEF munido de meu copo e meu pão, para ver, atônito, que nada, nada, nada havia mudado: estava lá o 39-G a brilhar no marcador, e estava lá, a representar aquele número 39-G, uma família nuclear de dois adultos e duas crianças, cidadãos de algum país longínquo onde os cidadãos usam turbantes coloridos sobre a cabeça. Voltei ao meu Guerra e Paz e ao tic-tac do meu coração, arrependido de não ter tomado na tasca, com calma e decência, nem ao menos um cafezinho merecido.

Quatro horas e quinze minutos mais tarde, e mais nervoso e ansioso do que quando defendi a minha tese de doutorado ou quando um dia fui entrevistado na tv para um programa cultural, apresentei-me enfim ao chamado do número 56-G. E tudo transcorreu de modo tão eficiente e tão pouco dramático, que me senti um pouco lesado, e me indignei, e cheguei ao ponto de pedir à moça que pelo menos me deixasse ficar ali à frente dela mais um pouquinho, “só mais uns minutinhos...”, pedi. “O número 35-G demorou vinte minutos, o 36-G também, e o 39-G no mínimo quarenta”, eu disse, mas ela só me olhou um olhar debruçado e exausto, tendo me pedido apenas um terço de todos aqueles papéis que eu trazia na bolsa; não me pedindo, se calhar porque eu estava naquele dia com a chamada “cara boa”, os meus antecedentes criminais e me dizendo apenas: “Vá o senhor para casa e espere uma notificação”. “Mas...”, comecei, e ela já gritava: “O próximo! O 57-G, se faz favor!”. Insisti: “Mas e os meus anteceden...”. E ela: “Vá o senhor para casa e espere uma notificação, a chegar pelos correios”.

Enquanto espero, escrevo que espero.

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